quarta-feira, 30 de out. de 2024 at 23:08
October 31, 2024•1,222 words
cabeça mutilada
sem fôlego
tateio e busco
e
em cada gaveta
em cada pote que eu abro
eu vejo uma pergunta
“certeza?”
sei que tá errado
eu odeio passar por isso
mas as vezes não tem outro jeito
as vezes é só isso que resolve
é disso que eu preciso
mas não acredito que to fazendo isso de novo.
“fraca.”
e eu procuro qualquer coisa afiada o suficiente
pra fazer sangrar um pouquinho da minha dor pra fora
como se fosse uma sangria
a minha doença é a angústia
penso que,
talvez ela saia de mim junto com o sangue
e
prendo a respiração
a cada deslizada
esfregada
de um cortante na pele
mas não dói
•••
sabe doutor laercio,
quando é a gente que faz
não dói…
eu nem sinto.
“sempre pensei nisso e agora você matou minha dúvida, guria”
•••
isso de fato nunca doeu
doía na hora de borrifar perfume
essa era a intenção
doía quando agarrava na roupa
ou quando coçava demais
mas o ato em si
nunca doeu.
nem quando ele escorria gorduroso e brilhante feito bolhas de sabão.
eu vejo brotando da pele,
o alívio.
mesmo menos violentos e afiados do que antes,
mesmo espaçados e escondidos,
eu ainda posso ver
nascendo, se libertando, gotejando e escorrendo,
é o alívio.
sensação de dever cumprido
mas percebo que as vezes
a sensação é de quero mais
e o alívio se torna terror
ao perceber que eu tô pensando naquilo
naquilo.
só tem duas opções
fazer e se arrepender
ou fazer e pensar naquilo.
mas tem uma regra
vc não pode pensar naquilo
naquilo? naquilo não pode.
não, não pode.
não pode se deixar pensar naquilo.
isso não é bom sinal
sério, isso não é bom sinal
já devia ter passado, tinha que ter passado.
e nesse naquilo
pensar e fantasiar
em ser mais fundo,
em qual posição voce ficaria,
quais seriam seus últimos pensamentos,
em como te achariam.
e entre soluços quietos
eu percebo
que aquilo ainda existe dentro de mim
que eu tenho medo de escutar
que eu tenho medo de não ter controle
sobre um mal que não fui eu que criei,
não por querer.
eu percebo que tenho medo de que
não importa o que eu faça,
nem o quanto eu melhore,
ou quanto eu afaste esses pensamentos com esses hábitos que me matam aos poucos,
só com a morte em si
completa e de uma vez,
só ela
vai me libertar dessa angústia
que nunca deu trégua
desde o começo da minha existência.
vai ver já nasceu comigo,
é intrínseco ao meu ser.
talvez o preço de viver seja esse
viver em eterna dúvida
se vale a pena ou não,
se vale a pena pagar a dívida,
se um dia virá a redenção
de um erro que não fui eu quem cometeu.
não sei qual foi meu pecado,
talvez tenha sido simplesmente
ter nascido eu
.
jun/2022
não gosto do jeito que ela me olha.
cabelo curtinho loiro, sem paciência.
deve ser tenso ter tentado salvar vidas que queriam ser salvas e ter falhado
e depois ser obrigada a salvar uma vida que
queria ter terminado.
eu até entendo, deve ser injusto.
eu perfurava mais ainda a pele
com o cateter da mesa do lado.
lembro dos
pacientes da enfermaria dormindo
mas teve uma mulher que viu,
e não fez nada.
ninguém faz.
nem nessa situação alguém se importa.
mas se pelo menos uma pessoa tivesse se importado antes, nem nessa situação eu estaria.
laercio deu 5 pontos
tratou como se fosse algo normal ou rotineiro
(devia ser mesmo
me fez esquecer do porquê eu estava lá
conversou comigo como se estivéssemos só dando um rolê
“você me lembra clarisse”
clarisse?
“renato russo. quando te liberarem, pesquisa.”
tinha uma mulher maravilhosa, de nome comprido e difícil, não consigo lembrar.
ela foi boa comigo.
me acalmou e conversou comigo
na hora de colocar aquele tubo.
me senti muito cuidada com ela,
levou água a minha boca
pra eu bochechar e
me livrar do ranço de carvão que eu cuspia
mas a de cabelo curto
pelo semblante que ela tinha
enquanto me via em aflição,
deve ter pensado que
a lavagem foi minha lição,
mas não uma punição.
ela devia saber que castigo de verdade
era ter falhado e continuado viva
eu chorei pra não ir embora
por medo
e embora fosse muito pedido para que eu morresse, que eu desistisse
ou fosse manifestado o desejo que existia de que eu nem tivesse nascido,
percebi que
eles também tiveram medo;
porque em casa
tinha gaveta de remédios trancada
tesoura estilete agulhas faca
e até cortador de unha e pinça confiscada
.
ainda tento sair da fase da redução de danos
que sempre intercalei ou migrei de vício
corte pra vômito de vômito pra corte de corte pra remédio de remédio pra corte de corte pra fumaça
mas não valeu a pena
meu dentes foram podres podres
(fui no dentista, tá resolvido)
meu estômago é frouxo
eu cuspo sangue
minha garganta inflama demais
olho demais pro meu prato ou pro espelho as vezes
lembro de umedecer o dedo mindinho
mergulhá-lo no saquinho
e ver grudando uma massinha
esfregar ela na gengiva superior direita
sentar e esperar cinco minutos até tudo colorir de novo
lembro de pegar um pote
que fazia um barulho engraçado ao chacoalhar
do lado uma mistura de álcool fedido com refri
abrir cinco cápsulas no copo
e beber
e me sentir anestesiada
minha pele tem cicatrizes,
se olhar atentamente pode me conhecer um pouco mais
não quero que elas clareiem
preciso olhar pra lembrar do que já passou
fotos me fazem ter certeza do que aconteceu
textos me fazem lembrar do que aconteceu
cicatrizes me lembram do que não posso esquecer,
para que eu não faça a mesma coisa de novo
para que eu não erre nas mesmas coisas
pulso coxas panturrilhas braços
perdi a vergonha deles
e mesmo que eu não queira que clareiem,
eles fazem esse favor
o tempo faz
talvez pra não ser um choque pra todos que me verem, assim como já foi um dia.
essas vão se apagando,
mas as branquinhas que vão surgindo
ocasionalmente
são só uma lembrança que eu ainda preciso de ajuda
entre meus dedos tem um cigarro
camel, double de melancia ou o roxo e azul
ou o de pera
o cheiro não me incomoda mais
eu levo 3 minutos e 6 segundos pra saciar
a pressão baixa, o dedo formiga,
a respiração desacelera e
os pensamentos também
solto o pito e piso
nos dedos agora só há o aroma nauseante do vício atual
mas nada disso vale a pena
tudo isso
me machuca
me destrói
me mata
poesia não faz isso
então eu ainda não posso trocar isso por poesia
poesia parece um processo de cura
mas não sei se posso ser curada
ou não sei se mereço
(nem sei se eu quero. talvez eu mereça isso)
meu castigo talvez não sejam meus fardos
talvez esses não sejam meus fardos
talvez eu já tenha nascido condenada
a sofrer e fazer outros sofrerem também
me destruindo para pagar os meus pecados
talvez eu seja condenada
a pagar pecados que não são meus
já devo ter nascido condenada
a ser uma eterna mutilada
e hoje já não sei se a morte
vai me libertar disso