Serviço Militar: Ordem Unida

REGULAMENTO INTERNO E DOS SERVIÇOS GERAIS — R-1 (RISG)
[…]
Seção VIII
Dos Cabos e Soldados

[…]
Art. 130. Ao soldado cumpre, particularmente:
[…]
III - manter relações sociais somente com pessoas cujas qualidades morais as recomendem;

Em forma entrei, junto com os outros. Anteriormente nos foi dada a recomendação de comparecer ao local utilizando camiseta branca, calça jeans e um tênis escuro, primeira iniciativa de uniformização do grupo. Dentro de um grande salão, ocorreu a seleção complementar, o que consiste em alguns testes antes já executados na junta mais alguns outros de interesse da OM.

Preenchimento de um formulário de saúde, teste de visão (com óculos, claro!), teste físico com execuções de flexões (ser apto a fazer flexões é, de fato, de extrema importância) e alguns soldados oprimidos esbanjando vingança em suas grosserias costumeiras. Também houve uma entrevista médica individual, onde o fardado fazia algumas perguntas e tentava desvendar se aquele atestado médico era verdadeiro ou falso.

Nenhum atestado em minhas mãos, não restou muitas perguntas, porém foi naquele momento, pela primeira vez, o qual recebi sincero reconhecimento humano de um fardado. Perguntou o que fazia, o que tinha interesse em fazer no futuro e se queria servir (todos costumavam fazer esta pergunta). Demonstrado meu interesse na carreira acadêmica civil, em tom sincero e um pouco decepcionado:

Tem que estudar mesmo.

Aquela decepção dava indícios de que meu interesse não tinha muitas chances de ser consumado naquele ano.

Tantas e tantas cadeiras depois, dias seguintes, com a mesma rotina na frente da OM, fomos levado para um local diferente. Afundado no quartel, lá atrás, se encontrava o que seria o lugar o qual nós frenquentaríamos mais do que nossas casas. Nas paredes, frases nos introduziram a palavras como “missão” e a fala dos fardados gírias como “bizu”. Sem cadeiras, pois era o chão agora nosso parceiro de horas.

“A dor é passageira, a glória é eterna.”

Você poderia fazer qualquer pergunta e todos eram incentivados a isto, porém, havia um procedimento:

  1. Caso tivesse uma pergunta, levantasse o punho cerrado da mão esquerda ao alto;
  2. Esperasse pela atenção e permissão do fardado;
  3. Quando permitido, levantasse, mantendo os pés juntos e as mãos coladas ao corpo, e dissesse a seguinte frase: “Conscrito …, permissão para falar.”
  4. Quando a permissão fosse concedida, poderia fazer a pergunta.
  5. Enquanto fizesse a pergunta, mantivesse a mão colada ao corpo, sem gesticulações.
  6. Caso pulasse algum passo, teria de sentar e levantar tantas vezes determinadas pelo fardado e tentar novamente.

Isto se chama ordem unida. Com o tempo, fomos descobrindo que levantar a mão direita com o punho aberto era uma má ideia, que a atenção do fardado superior só é dada caso seja de interesse do mesmo, que pés juntos e mãos coladas ao corpo era a tão sagrada posição de “sentido” e que o desrespeito de “orientações” eram passíveis de punições simples, metódicas e dolorosas como o “sentar e levantar”. O tipo de tratamento agora era forte, poderoso pelos gritos e terrificante pela proximidade da abordagem. Seja bem-vindo ao treinamento militar.

Uma interessante instrução (“não é aula, é instrução, soldado!”) foi do treinamento de marcha ordinária. Colocaram todos os conscritos em uma fila ao redor de um pátio principal e, com ajuda do bumbo, marchamos. Vários fardados ao lado, explicando energeticamente a posição do dedão e exemplificando o movimento dos braços. Destoado, aquele incomum beirava a loucura.

Acabava de entrar em um universidade e ingenuamente acreditava no meu encaixe num caso de dispensa, esperança que alimentei independente em qual fase do processo de seleção estava. Comprovantes de matrículas, boletos de pagamento, tudo ali quando me apresentei a um fardado. Enfrentar aquele péssimo tratamento gratuito era uma abominação, tão difícil. Aos gaguejos, apenas a resposta direta:

Tranca, bichão.

Logo mais descobri casos parecidos com o meu e ainda mais graves, como bolsistas no segundo ano de engenharia, incapacitando todos meus argumentos e capacitando minha entrada ao serviço militar.

Inesperado, inevitável: o fardado agora era eu.

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