Serviço Militar: Peculiaridades
July 26, 2015•768 words
Sinto falta de fotos nesses artigos, o que demonstra minha resistência passada de não perpetuar qualquer momento que vivenciei. Porém, costumo propagar as incríveis gírias que contrariamente foram infiltradas em cada um de meus neurônios. Enquanto seguro mais uma história do internato por preocupação, atiro um artigo citando algumas peculiaridades do ser militar.
A prática de exercícios físicos estava presente a todo momento. Além das duas horas inteiramente dedicadas às corridas forçadas de gritaria e flexões, o ambiente nunca permitia o descanso. Ou você corria para cumprir algo, ou fazia flexão sem razão. Flexões sem razão: um sucesso! Não era anormal entrar em algum lugar e alguém estivesse fazendo flexão. Aliás, era anormal se ninguém estivesse fazendo flexão.
Das diferentes formas de punições, a flexão era uma delas, o que acabou virando uma rotina. Um cabo, logo no começo, revelou sua capacidade supra militar de pensar:
Não percebem porque fazem isso? É para vocês treinarem.
A flexão acabou por ser mais executada em comemorações. Vamos para casa: 10 flexões. Não estou de serviço amanhã: 20 flexões. Vou embora na primeira baixa: 60 flexões, com muito prazer. Estas últimas flexões foram minha derradeira e sutil tentativa de demonstrar aos interessados que minha fraqueza nas atividades militares não se aplicava quando minha vontade de fugir daquele lugar o mais rápido possível estava em evidência.
Uma excelente maneira de espantar o sono, parceira de madrugadas de serviços, a flexão era o símbolo do perturbado e machista âmbito em que vivíamos. O prestígio da força física era inquestionável, expresso por todos, induzido por todos. Limites, certamente, pouco respeitados. Lembro de minhas dores na panturrilha, no meio do ano, que foram classificadas pelo médico interno como “estresse” e vítimas de olhares debochados de alguns superiores.
Usualmente ficava para trás em longas corridas. Conciliar as canções estúpidas com esforço desmoderado não era uma de minhas habilidades e alguém sempre me ajudava durante o exercício, ou empurrando, ou ofendendo. Ofendendo normalmente estavam, claro, os superiores, esclarecendo energeticamente o quão “fraco” eu sou. Um método que descobri era concordar com qualquer menosprezo direcionado do superior, assim o emissor se tornava mais “tolerante”. Confirmar provocações costumava ser bem útil.
Se é um mundo recluso, há de ter sua própria língua. Um mesclado de português e imodéstia, vigorosamente e explicitamente recusado por mim pelos primeiros meses (alguns colegas lembrarão de minhas reclamações acerca), é lotado de positivos e negativos, permissões, os quais tento dar suas devidas traduções, aplicações e exemplos práticos:
- “Última forma”
Significa desconsiderar algo falado, ou comando ordenado.
“Sabe essa pedra de 300 quilos que vocês trouxeram? Última forma, leva de volta.”
“Última forma no caso de vocês irem para casa no final do expediente hoje.”
- “Bizonho”
Característica de alguém que encontra dificuldades em ser ágil, antecipar alguma ordem óbvia ou fazer algo. Alguém tonto, besta.
“Sarsi, larga a mão de ser bizonho e limpa aquela sala, de novo.”
“Você é bizonho, Sarsi, por isso chorou pra matar aquele coelho.”
- “Arranchar”
O refeitório chama rancho e você precisa fazer um arranchamento, se arranchar, para comer por lá.
“Ei, vamos nos arranchar para comer o frango samonelado e delicioso arroz duro do rancho?”
“Todos os soldados não podem almoçar fora, portanto, têm de ser arranchar. O frango não é tão ruim assim.”
- “Bizu”
Algo esperto, perspicaz, uma dica. Alguém que obteve/obtêm vantagens.
“Ele é bizurado.”
“O bizu é usar o banheiro da pérgula, pois lá não fede, não está entupido e não é normalmente frequentado por porcos como nós.”
- “Peixe”
Ser peixe de alguém é ser o protegé deste alguém. Normamente usado em relações de superior e subordinado.
“O Sarsi é peixe.”
“Sou peixe daquele superior.”
- “Acochambrar”
Fazer algo de forma incompleta, ser preguiçoso.
“Vocês acochambraram pra limpar aquela sala.”
“Você não consegue correr cinco quilômetros, com dores após dias de corridas seguidas, porque está acochambrando.”
- “Missão”
Qualquer tarefa. É mais emocionante chamar de missão.
“A missão é limpar este corredor.”
“A missão é limpar esta rua.”
“A missão é limpar estas janelas.”
“A missão é limpar este banheiro.”
“A missão é limpar este outro banheiro.”
“Missão: banheiro.”
- “Torar”
Dormir.
“Sarsi, está prestando atenção ou está torando?”
“Em decorrência de nossa absurda quantidade de atividades exaustivas diárias, ao invés de comer irei torar na hora do almoço. Minha prudência e saúde são admiráveis.”
- “Golpe”
Deixar de fazer algo, enganar alguém.
“O Sarsi está dando o golpe.”
“Ele deu o golpe, descobriram, e ficou para faxina após expediente.”
“É Revolução de 1964, não Golpe de 1964.”
- “Cessa”
Pare de falar, pare de divulgar seus pensamentos idiotas, pare de fazer algo.
“Cessa com isso, Sarsi.”
“Cessa de querer dar abraços, Sarsi.”
“Cessa de querer conversar e vai torar, Sarsi.”
Devido ao meu processo de desintoxicação, acabei esquecendo algumas. Irei atualizando enquanto retomo minhas lembranças.