Serviço Militar: O E-mail

Recentemente, fui apresentado a uma precisa definição da educação militar, remetida aos tempos de Esparta:

  1. exercícios físicos;
  2. laconismo;
  3. ódio.

Olavo Bilac é o patrono do serviço militar obrigatório no Brasil. Se você está servindo contra sua vontade, mais alguém para culpar! Não sou perito na biografia desta importante figura da literatura nacional, mas conheço seu trabalho pelo “Hino à Bandeira” e de seu declarado amor pela pátria, símbolos nacionais e baboseiras. Enquanto procurava por aquela maldita frase, a qual relaciona serviço militar com “a formação do cidadão” (sério), topei com esta hipocrisia meiga:

“Que fazer para ser como os felizes?”…Ama!

Tão letrado, evitou pensar em nossa perca de vocabulário, afinal, soldado é massa burra, não importa se sabem usar “cujo”. Sem amor, sem o que devolver, o próprio fundamental apoiador desta obrigação no começo do século XX entenderia minha infelicidade nesse odioso um ano que tive.


Após uma série de eventos inoportunos em um momento do internato, senti a necessidade de escrever sobre aquilo. Tinha que lavar algumas roupas sujas de terra, tomar banho e engraxar o coturno, mas também tinha que escrever sobre o que havia acabado de acontecer. Minha consciência não permitia que aquilo passasse batido, interno.

Peço para que ignore certos erros gramaticais deste e-mail. Consertei alguns grotescos, mas dentro do treinamento para a ignorância, perdi algumas habilidades com letras, as quais estou (ainda) tentando recuperar.

22 de março de 2014, 00h36min. Escrevi cronologicamente o que desencadeou todos os acontecimentos daquela noite, começando com uma síntese:

Todos os soldados aqui dentro são tratados como um lixo.

Gênio! Parece óbvio, mas sempre precisava (ou preciso) enfatizar. A sequência é toda sobre o penúltimo artigo, mas com rancor e alguns detalhes que não lembrava:

Nós voltamos para o nosso alojamento […] e terminamos a instrução ali mesmo. Depois de acabada a instrução, ficamos ensaiando hinos/canções do Exército. Ficamos uns 30 minutos cantando as músicas dentro do alojamento. Sem motivo, o superior ordenou que nós saíssemos do alojamento e ficássemos lá fora. Ficamos mais uns 45 minutos cantando músicas, na chuva.

A noção de tempo era abstrata: rápido, porém as tensões aconteciam em câmera lenta. Estava sendo generoso ao escolher poucos minutos, foram bem mais. Sobre a chuva, acabei me acostumando, mas ainda era uma ideia absurda enquanto um teto estava logo ao lado.

Trouxeram nossa ceia aqui para baixo, e eles liberaram a gente para pegar a comida e o suco. Não haviam dado permissão para comer/beber ainda, mas um menino bebeu um pouco do suco do copo, porque estava transbordando. Superior parou, olhou e disse para o menino: “estou pensando na maldade que eu vou fazer com você”. Superior chamou o menino para perto dele, ordenou que ele retirasse o boné dele e jogasse todo o suco do copo dentro do boné, e que bebesse dali mesmo.

Atenção para o fato de que o menino estava usando aquele boné durante algumas semanas, entre sóis e chuvas, sem lavar. Atenção também para minha escolha de utilizar a palavra boné, ao invés da “correta” gorro, evidenciando minha recusa em aceitar o vocabulário e, por conseguinte, as metodologias. Lembro do medo assolando o ar, e claro, flexão:

E tudo isso aconteceu entre pessoas tendo que fazer flexão por que fizeram “algo de errado”.

“Todos em posição de flexão porque vocês fizeram tudo errado!”. Ficamos um bom tempo apoiados ao chão, esperando que o superior acabasse com o lunático espetáculo. Alguns gritos ali e aqui.

[…] comemos a ceia, e continuamos ensaiando as músicas. Eles ordenaram que todos sentassem no chão molhado, juntos, debaixo da chuva, e cantando.

Incrível quanto tempo eles tinham reservado naquela noite para nos depreciar.

São muitas músicas e ensaiamos sem instrumental; é muito difícil pegar o ritmo, ainda mais a letra. Um menino não conseguia decorar a letra e o superior percebeu, disse que nós só iríamos dormir quando esse menino decorasse duas músicas.

Sem novidades, não iríamos ter muito tempo para dormir de qualquer jeito.

Eis a pior parte: o superior disse que ele pretende liberar a gente domingo, logo após do café da manhã, porque ele sabe que é difícil ficar todo esse tempo aqui dentro fedendo. Ele disse que nós estávamos fedendo enquanto sentados na chuva, por ordem dele.

As condições de higiene eram precárias. A água do chuveiro acabava quando ainda faltavam ⅔ de todo o contigente, que se contentava com pingos. Achei melhor, numa oportunidade, dormir e acordar uma hora antes do toque, quando a água voltava aos canos. Nós acreditávamos que desligavam o registro propositalmente, desconfiança negada por um instrutor meses depois.

A condição para que nós sejamos liberados domingo é decorar cinco músicas do Exército e seus ritmos, e isso com apenas um papel com a letra.

Sim, todo final de semana nós éramos liberados para ir para casa, na manhã de domingo e com volta prevista para 23h, com o propósito de podermos lavar as roupas adequadamente. Família era um artifício usado por eles para manter o controle, desde a entrada até saída. Nossa maior fraqueza, um jogo para eles.

Nessa história, as pessoas estão se virando uma contra as outras […] todo mundo está se xingando, e sinto que é isso que eles querem.

Discutido em outro artigo o passatempo preferido dos superiores: direcionar a culpa a alguém, para que não o culpem. Bem planejado e efetivo, já apartei umas discussões.

Eles não vão liberar domingo, e o que o superior falou, que vai “liberar se nós decorarmos as músicas”, é simplesmente uma técnica. É absolutamente ridículo como eles se utilizam de tudo para forçar as pessoas a fazerem o que eles querem, mesmo que seja algo assim, como família. Eles não se importam.
[…]
Não acho que vou sair domingo daqui. Eu quero, vou tentar com todas as minhas forças decorar essas músicas, mas tenho quase certeza que isso é um jogo psicológico, o qual não vou cair.

Nós acabamos sendo liberados no domingo, este era apenas eu conformado em esperar o pior. Tentava, ainda, tranquilizar o destinatário do e-mail:

Sabe que até está divertido aqui dentro? De verdade, tirando toda essa babaquice desse treinamento desumano, as pessoas arrumam um jeito de dar risada e serem felizes. É bem impressionante.

Não deixa de ser verdade, mas realmente não importava para mim.

Eu te ligo quando eu puder. Estou bem, de verdade.
Beijos.

O que importava é quando eu iria para casa.

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