Serviço Militar: A Canção

REGULAMENTO INTERNO E DOS SERVIÇOS GERAIS — R-1 (RISG)
[…]
Seção VIII
Dos Cabos e Soldados

[…]
Art. 130. Ao soldado cumpre, particularmente:
I - esforçar-se por aprender tudo o que lhe for ensinado pelos seus instrutores;

Mais um dia de exercícios físicos. Enquanto a voz do superior era a única nos silenciosos alongamentos, pensava o quanto iria durar, para onde iríamos, se iria demorar muito, se iria aguentar e se alguém me chamaria de fraco. Pensamentos repetidos, preocupações recorrentes, a eterna repulsa. E lá fomos.

Estamos indo em direção ao portão de saída, parece que vamos correr fora. Correr fora é mais agradável do que dentro do quartel, porém aquele cara vai me pertubar a corrida inteira. Ok, só corre. Cante baixo as canções, para você suportar, mas não deixe eles perceberem que não consegue gritar e correr ao mesmo tempo, para não ficar após expediente dando voltas. Ok. Aliás, aquela canção, não cante aquela canção.

Esta canção:

Interrogatório é muito fácil de fazer
Você pega o animal e bate nele até dizer
Mas e se ele não falar
Bate na cara, espanca até matar
Arranca a cabeça, joga ela pro ar
[…]

Interessante é que quando corríamos fora e um superior burro começava a gritar essa, um superior maior e inteligente mandava parar. Não pode cantar essa canção na rua. Dentro do quartel está tudo bem, na rua não. Entre ironias sobre os direitos humanos e críticas diretas à Comissão Nacional da Verdade, o orgulho doente e as justificativas universais das Forças Armadas transparecia. Os soldados bem adestrados repetiam as canções que, encharcadas de significados, geravam uma pequena parcela de jovens “olho por olho, dente por dente”. Resistir ao mundo contaminado por tais ideais chamou atenção, mas não tanta, ainda bem.

Não cantaria aquela canção. Subindo pela rua com as canções comuns de culto a loucura, exteriormente inofensivas, uma senhora e sua filha desciam pela calçada. O som do tropeço da idosa ecoou pelas margens dos prédios em volta, fazendo com que todos parassem de cantar instantaneamente. O superior ordenou que esperássemos enquanto iria ajudá-la. Após firmar seus pés no mundo novamente e com sua confirmação de ter recuperado todos os sentidos, o superior se despediu da velha senhora e continuou a corrida, com as canções.

Chegamos numa parte bem movimentada, um balão que é o encontro de várias avenidas, estávamos na praça bem ao centro. Dos confins, aparece o superior burro, para cantar a canção. Virei meus olhos: “burro, ele não pode cantar essa aqui”. As pessoas talvez olhariam um grupamento do Exército valorizando métodos poucos ortodoxos de interrogatório, coisa que tal instituição como Estado fez aos montes na recente história do país. Talvez geraria medo, espanto, uma pequena manifestação contra, alguém poderia gravar e mandar para um órgão jornalístico, o qual produziria uma notícia sobre oficiais incitando o caráter violento e anti-humano, evidenciando a persistência do ideal da década de setenta dentro da Força.

Pensei que deveria cantar, alto, mais alto que todos, para que percebessem, que notassem o que acontecia ali, o que estava sendo obrigatoriamente ensinado para a base da população, que alguém odiasse aquilo tanto como eu, que alguém mais forte me tirasse dali. Antes que o superior maior e inteligente ordenasse que todos calássem a boca, gritei como nunca gritei.

E ninguém notou.

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