Serviço Militar: Coelhos

[…]
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão
[…]

Olhava para minhas mãos, principalmente a direita. Destro e adestrado, observei a gandola que me cobria e fixei na ponta da manga da farda. Um pedaço de madeira, minha mão e o camuflado, juntos, sendo apenas minha mão parte de mim. Alternava o olhar entre eles, focando a atenção no camuflado que cobriam meus braços levemente levantados. Uma mão segurava a arma, utilizada na formação da imagem desfocada em segundo plano, que consistia em um corpo peludo se remexendo.

“Ele está sofrendo, Sarsi! Você está fazendo ele sofrer!”

Eu sentia e reconhecia meu puro pânico. Com ordens, dei mais umas cacetadas. Ele não teve uma morte rápida por minha culpa. Meus colegas pareciam espantados, pela situação e por minha reação explicitamente repulsiva. Superiores riam.

Vários troncos largos eram destinados para nossas bundas imundas de terra, todos voltados para um tronco central, o abatedouro. A segunda parte consistia na degustação de diferentes tipos de chás, logo após a experimentação de diversas frutas, incluindo suas cascas. Tudo era passado de mão em mão, sendo que um pedaço de fruta deveria ser o suficiente para todos da fila.

Dois peixes (congelados, fato que o superior responsável lamentou), duas galinhas e dois coelhos: um para o instrutor, outro para o instruendo. Em meu pelotão, pelo que me lembro, o instruendo escolhido não conseguiu arrancar a cabeça da ave com as mãos, após retirar várias penas do pescoço em suas tentativas. O coelho estava na mão de outro instruendo, o qual acariciava o animal e transmitia “amor”, obedecendo uma ordem.

Eu chorei, por isso me escolheram. Minha educação envolta de animais domesticados foi mais forte que meu esforço físico em não lacrimejar. O superior de meu pelotão orgulhosamente apontou o dedo em minha dignidade e disse “vai lá”. Em seu semblante estava presente o “cumprimento de dever”, como se aquilo fosse um favor para mim, algo necessário para minha formação como ser humano. Em sua concepção, eu era um filho que precisava enfrentar os males da vida, conhecer o mundo como o recipiente de ódio que ele é e acordar de minha vida confortável e “envernizada”. Matar um coelho, pelo jeito, era uma maneira sólida para atingir esse objetivo.

O que mais me surpreendeu no momento foi minha falta de hesitação. Me chamaram, eu fui, sem titubear, com passos firmes, mesmo que aos prantos. Minha face seguia o caminho oposto de meu corpo. Penso agora que eu poderia simplesmente sentar ali, fingir que perdi a audição para todos os xingamentos e ordens, me recusar a praticar tal ato que iria contra a todos os meus princípios. Mas a realidade é que, em poucos meses, havia virado uma máquina, pronta para realizar qualquer tipo de tarefa, sem pensar, pela pátria. As lágrimas de meu choro eram pela evidente impotência e falta de autocontrole. Naquele momento, assimilei minha derrota: vivia sem razão.

Por fim, me deram o olho do coelho de presente.

Meus sonhos constantes sobre o assunto relevam as sequelas que ainda existem. Tive que retornar ao meu quartel umas semanas atrás, o que me trouxe uma gama de reações e sentimentos, os quais indicam que ainda tenho pendências com essa fase de minha vida.


Esse é o fim da minha série de textos. Sinto que esse, especialmente, deveria ter mais detalhes e ser mais longo. Porém, o que sinto agora é o resultado de tudo aquilo, detalhes não importam mais. Gostaria que o leitor reconhecesse o sofrimento que muitos, como eu, passaram, passam e passarão por lá. A guerra não me parece natural, tanto quanto o militarismo e ninguém deve ser obrigado a passar pelas situações as quais relatei.

Penso que todas as pessoas que me machucaram nesse período não sabem disso. Mesmo assim, gostaria que soubessem que estou procurando o caminho para perdoá-las. Não que isso seja significativo para vocês, mas é para mim. É algo que preciso para finalmente tirar o maldito coturno de meus pés.

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