Viver e morrer com fome: Jesus
April 18, 2025•629 words
A Sexta-feira Santa convida os cristãos a um exercício profundo de identificação com a vida e a paixão de Jesus Cristo. O jejum e a abstinência, mais do que gestos ritualísticos, são atos simbólicos que os fiéis assumem para reviver, em menor escala, a renúncia radical que marcou a existência terrena do Salvador. Desde seu jejum no deserto, enfrentando as tentações do mundo, até a sede e a fome suportadas durante a Paixão, Jesus escolheu abraçar a fragilidade humana. Sua vida inteira foi um contínuo esvaziamento: recusou comodidades, expôs-se à incompreensão e, no ápice de seu ministério, submeteu-se à violência física e às injustiças de um processo manipulado de antemão para condená-lo. Ao privarem-se voluntaria e temporariamente de alimentos e prazeres, os cristãos não apenas recordam esses momentos, mas entram em sintonia com a lógica de sacrifício que Jesus adotou como caminho de redenção.
A privação autoimposta na Sexta-feira Santa também evoca, de modo visceral, os tormentos específicos da crucificação. Na cruz, Cristo experimentou a exaustão extrema — tanta sede a ponto de aceita saciá-la com vinagre, a dor das feridas, o peso do abandono. Cada gesto de abstinência do fiel é, em paralelo, um eco desse sofrimento, uma forma de unir-se a Jesus que, inocente, carregou o peso da culpa alheia, de cada culpa, de todas as culpas. Esse ato de solidariedade não é um mero luto, mas uma participação ativa no mistério que transforma a dor em ponte para a graça. Ao abster-se, o cristão reconhece que a verdadeira fome a ser saciada não é a do corpo, mas a do espírito, que anseia por justiça e reconciliação.
A reflexão sobre o sofrimento de Cristo inevitavelmente confronta a humanidade com um paradoxo: foram os seres humanos, mergulhados no pecado, que mereciam os castigos suportados por Jesus. Contudo, ele assumiu voluntariamente a cruz não para reforçar a lógica da punição, mas para subvertê-la. Sua paixão não foi um acidente histórico, mas um gesto deliberado de amor, capaz de ressignificar todo sofrimento posterior. As dores que ainda enfrentamos — fruto de escolhas pessoais erradas, de estruturas sociais opressoras ou da simples angústia pela finitude da existência — deixaram de ser “castigos divinos” para se tornarem realidades a serem transformadas. A redenção não anula a dor, mas oferece um novo sentido: ela deixa de ser um fim em si mesma para tornar-se um campo de batalha onde a graça pode florescer.
Ao carregar nossos fardos, Cristo desvinculou o sofrimento da ideia de castigo merecido. Sua ressurreição confirmou que a última palavra não é a da morte, mas a da vida que vence até mesmo as cadeias do pecado. Assim, quando os cristãos jejuam e abstêm-se na Sexta-feira Santa, não é por masoquismo espiritual nem para “repetir” um sacrifício já consumado. Fazem isso para recordar que, unidos a Cristo, suas próprias dores — ainda que inevitáveis — não são um abismo sem sentido, mas sementes de esperança. A injustiça que ele sofreu denuncia as injustiças que sofremos e também as que causamos; sua sede clama por um mundo onde ninguém precise ter sede de dignidade.
A ascese da Sexta-feira Santa é temporária porque não se trata de glorificar o sofrimento, mas de preparar o coração para a alegria da ressurreição. Os fiéis imitam Cristo na dor precisamente porque creem que, assim como ele atravessou a morte para chegar à glória, eles também são chamados a transpor suas cruzes cotidianas rumo a uma alegria imperecível. O jejum é, portanto, um ato de esperança: ao compartilhar simbolicamente as privações de Jesus, alimenta-se a certeza de que, no banquete eterno, toda lágrima será enxugada. A disciplina temporária da Quaresma aponta para uma liberdade sem fim — aquela que já brilha, como promessa, no domingo da Páscoa.
(Eu copiei a imagem do link da Wikimedia)