O luto em desastres

Por Adriana Cogo, Ministério da Saúde
Transcrito e adaptado por Susane Londero e José Cavalcante
Tempo de Leitura: 8 minutos

#pratodasverem: Mãos de diferentes pessoas se reúnem segurando velas, em um símbolo de conexão e unidade.

No texto você lerá sobre:

  • Toda manifestação de luto precisa ser reconhecida independente da natureza da perda.

  • Lutos desencadeados por desastres possuem características específicas e sinalizam uma transição psicossocial.

  • Ressignificações são mais possíveis com redes de relações de confiança, que podem fornecer contorno e cuidado.

Desastres e suas Perdas

Os desastres trazem inúmeras perdas para a vida das pessoas. Podemos pensar principalmente na morte de entes queridos, e também de animais de estimação, de coisas construídas ao longo da vida, de afastamento de pessoas e lugares. Há a perda de um ambiente conhecido, pois as cidades ficam diferentes, os espaços em que se costumava ir muitas vezes não estão mais ali. Plantações que são meios de subsistência ficam bastante afetadas nesse processo. As memórias, as fotos, os objetos pessoais, ficam para trás porque não dá tempo de pegar. Assim também com os documentos, pois nem todas as pessoas que são resgatadas têm a possibilidade de se programar para a saída. 

Papéis e ocupações são afetados, com muitos locais de trabalho destruídos. A privacidade é outra questão importante, pois as pessoas que são deslocadas e precisam ir para abrigos ou para casa de familiares ou conhecidos perdem a privacidade da forma como estavam acostumadas. Há também um atravessamento da mídia, uma vez que os desastres trazem muito foco para a situação, temos todos querendo ver o que está se passando. São olhares desconhecidos e curiosos que cruzam a vivência dos atingidos e podem deixar marcas. Outra perda é a da segurança de viver no mundo de uma certa forma. Em uma situação de desastre das proporções como ocorreu no Rio Grande do Sul, o mundo presumido, composto por valores, crenças e histórias, é fortemente impactado.

Diante de todas essas perdas, existe uma tendência de não reconhecer como perdas as situações que não sejam de morte, ou de minimizá-las. Algumas pessoas ouvem que pelo menos não perderam um ente querido. Entretanto, podem ter perdido todas as outras coisas que organizavam a vida, que lhe davam sentido. Toda manifestação de luto precisa ser reconhecida independente da natureza da perda. Não podemos colonizar os afetos dos outros determinando o que é uma perda relevante ou uma dor significativa.

Luto

O luto é uma reação normal e esperada diante de perdas significativas. Tudo o que a pessoa entender como uma perda para ela vai desenvolver um processo de luto, com maior ou menor intensidade de acordo com a importância que aquilo tem em sua vida. É um processo de cicatrização, é um tempo que as pessoas precisam para conseguir se entender no mundo que agora está tão diferente. É um processo que ajuda a encontrar significado para tudo aquilo que está acontecendo. 

É sempre individual, as pessoas vivem os seus lutos únicos e expressam da maneira que lhes é possível. Ao mesmo tempo, é um processo familiar, pois são indivíduos convivendo em famílias e em comunidades. Temos esse processo de luto individual dentro de uma família que vive seu processo de luto familiar, e ainda um processo de luto coletivo característico de desastres. As pessoas se identificam em relação a tudo aquilo que estão perdendo e vivem seus processos na comunidade.

Trata-se também de uma transição psicossocial, exigindo um envolvimento pessoal para conseguir se reorganizar diferente dali para frente. O luto não tem degraus ou fases, ele é um processo dinâmico, um movimento oscilatório entre viver a perda, voltar-se para a dor, vivenciar suas manifestações, e também experienciar a reconstrução, ou seja, se voltar para a recomposição do cotidiano nesse cenário. Por mais desconfortável que seja, essas oscilações são esperadas, e são inclusive adaptativas. É um processo natural do nosso organismo para conseguir entender o que está acontecendo.

Características do Luto

O luto desencadeado por desastres tem algumas características. Normalmente são múltiplas perdas, e, além disso, desaparecimentos de pessoas geram uma ambiguidade na vivência desse luto, pois por algum tempo não se sabe se as pessoas estão vivas, se estão em algum lugar seguro ou simplesmente ainda não conseguiram comunicação. Tal incerteza acarreta um processo mais complicado para as pessoas viverem os seus lutos posteriormente.

Há também a dificuldade de realizar os rituais que nos organizam internamente - ações simbólicas que transmitem e representam valores e ordenamentos que portam uma comunidade. Com dificuldades para localização ou identificação das pessoas ou até por dificuldade de acesso a locais para realizar esses rituais, fica dificultada também sua organização como de costume. Importa pensar alternativas para ritualizar os momentos nessas situações, sejam essas práticas individuais ou coletivas, com as condições de possibilidade que se tem onde se está, para se despedir, para fazer alguma homenagem para quem ou o que se perdeu, para inaugurar pequenos recomeços e fechar ciclos. 

Outra característica no luto desencadeado por desastre é a fragilidade do apoio imediato, que alarga a experiência de desamparo. O entorno está diferente, às vezes os locais em que se buscava auxílio (como instituições de saúde, igrejas ou mesmo clubes onde existiam reuniões comunitárias) estão indisponíveis. E é difícil conseguir apoio novamente desses círculos até que os recursos tenham sido organizados minimamente.

Manifestações do Luto

Perde-se também nos desastres a ligação com o território, que garante grande parte do contorno da identidade - algo fundamental para as pessoas se situarem e entenderem quem elas são dentro daquela família, daquela cidade, daquela região. Muito tempo sem previsão de estabilidade dificulta ainda mais esse enfrentamento do processo de luto. Podemos pensar o morar em ambientes provisórios como uma situação que tem potencial de afetar significativamente a vida das pessoas envolvidas no desastre pela desconexão abrupta com seu território cotidiano. 

Precisamos definir luto pensando em respostas em diferentes áreas: emocionais, físicas, comportamentais, cognitivas, espirituais. Somos atravessados em todas as áreas, todas as dimensões humanas. Algumas pessoas tendem a se isolar mais até para conseguirem se entender no meio disso tudo. Contudo, o isolamento é preocupante nesse processo. Deve-se incentivar que as pessoas possam estar com sua rede socioafetiva o máximo que puderem para ter um pouco mais de contorno e de cuidado diante disso tudo. 

Agitação, ansiedade e sensação de desamparo são algumas das manifestações significativas no campo das emoções. Outra manifestação significativa é a sensação de falta de ar, pessoas relatam com bastante frequência como se estivessem sufocadas. Fraqueza muscular também é algo que aparece, assim como relatos de boca seca. Temos queixas importantes somáticas como dores dores de cabeça e dores em partes do corpo. Questões gastrointestinais são bastante comuns nesse período de enfrentamento de desastres, assim como redução de imunidade, aumentando a suscetibilidade a adoecimentos diversos. 

É importante estarmos atentos ao aumento do consumo de psicotrópicos e à automedicação. A princípio o luto não é algo que precisa ser medicado, a não ser que a pessoa esteja desenvolvendo sintomas e reações que fiquem disfuncionais para vida dela. Precisa-se avaliar caso a caso, e não existe remédio para essa dor. É uma dor que precisa ser vivenciada e elaborada no decorrer do tempo para que se consiga seguir a vida de forma diferente de antes.

Em termos de manifestações cognitivas, destaca-se nos relatos uma certa descrença em relação à vida, ao que terá de ser enfrentado no futuro, dificuldade de conseguir pensar como as coisas serão a partir de então. Aparece também confusão - déficit de memória, de concentração, perda da noção de tempo e de espaço, dificuldade de se entender. Há relatos significativos, ainda, de pensamentos intrusivos. Às vezes a pessoa está ocupada com outra coisa tentando não pensar no assunto mas o pensamento vem. As memórias da situação enfrentada visitam com uma certa frequência e até com riqueza de detalhes.

Reflexões

O luto é um momento de crise significativo e exige das pessoas uma mudança e uma reestruturação na vida. Não é um processo fácil, todas as suas manifestações juntas dificultam entender o que se tem de recursos de enfrentamento. Ainda assim, é um caminho possível, embora esse processo seja doloroso, a experiência de perdas nesses contextos também pode promover ressignificações de diferentes âmbitos da vida, principalmente se for possível estabelecer uma relação segura e mais próxima com outras pessoas que também estão enfrentando a situação, para dar uma sensação de pertencimento e conseguir formar uma rede de apoio com quem está passando por processos similares. 

Cada um vai enfrentar o seu processo, e às vezes ter alguém para caminhar junto conosco diante das nossas dores e de todas essas manifestações pode ser algo muito importante, pode fornecer um outro sentido para esse enfrentamento. Deve-se incentivar o compartilhamento das emoções, bem como o pertencimento a grupo. A sensação de pertencer possibilita enfrentar com menos dificuldades e fortalecer a solidariedade. A ajuda mútua entre os membros da comunidade atingida faz com que essa união nesse momento de crise proporcione algum conforto, traga uma certa esperança para tudo o que vem pela frente e traga ainda uma confiança de que a reconstrução é possível. 

Cuidar e acolher os processos de luto em desastres tem a ver com redes socioafetivas que são suportivas para torná-los um pouco menos solitários e mais possíveis. 


Adriana Cogo é psicóloga, especialista em luto e com experiência em atuações e emergências e desastres.

Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BEKDaIUnVyU&t=356s&ab_channel=Minist%C3%A9riodaSa%C3%BAde 

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