O paradoxo do descanso em tempos de exaustão

Por Susane Londero e José Cavalcante
Tempo de Leitura: 9 minutos


#pratodasverem: um close no rosto de uma pessoa com a mão sobre a boca e nariz, um ar de preocupação, e os olhos fechados. Em preto e branco.

No texto você lerá sobre:

  • Há um cansaço social disseminado, pois as pessoas cobram-se cada vez mais e são pressionadas por uma lógica do desempenho em todas as esferas da vida.

  • Ao consumirmos o próprio corpo para alcançar ideais midiáticos e fantasias sociais acabamos por adoecer, por exemplo, na depressão ou no burnout.

  • Descansar é uma parada da correria, em que abdicamos da onipotência e nos permitimos conectar com outra forma de viver que não a da produtividade.

  • Descanso não é distração ou um simples hiato de produção, mas uma conexão com a experiência de estar vivo que renova a vitalidade.

O descanso e o autocuidado são essenciais para a saúde física e mental, mas muitas vezes são negligenciados em uma sociedade cada vez mais acelerada. As pressões para estarmos envolvidos em atividades consideradas produtivas tornam difícil desacelerar e tirar um tempo para outras atividades importantes para o bem-estar.

Projetos de trabalho, postagens em redes sociais, conversas no Whatsapp e outras pequenas tarefas rotineiras se alternam, capturando nossa atenção. Por baixo desse frenesi, há todo um movimento de busca por felicidade, bem-estar e sucesso. Paradoxalmente, essa busca incessante pode levar à exaustão

Um cansaço social

No ensaio "A Sociedade do Cansaço", o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han discute uma forma de adoecer que acomete a sociedade moderna: o cansaço. Para Han, o cansaço não é simplesmente uma questão física, mas sim uma resposta do corpo ao excesso de positividade e cobrança que a sociedade impõe.

Han argumenta que a sociedade atual é caracterizada por uma violência da positividade. Somos constantemente bombardeados com mensagens positivas que nos dizem que devemos ser felizes, bem-sucedidos e produtivos. No entanto, essa positividade pode ser opressora e levar ao esgotamento.

A cobrança pelo desempenho é outro fator que contribui para o cansaço. Somos constantemente pressionados a fazer mais, a ser melhores e a atingir objetivos cada vez mais altos. Essa cobrança é introjetada e vira autocobrança, levando a sentimentos de inadequação e fracasso.

Não se trata mais de uma sociedade disciplinar que vigia e pune, mas de uma sociedade em que as próprias pessoas se levam aos extremos em busca de seus objetivos, se punem e se extenuam. Acabam por descobrir, de um modo doloroso, os limites de si e do corpo.

Frente às promessas do poder cada vez mais, do seja cada vez melhor e do trabalhe enquanto eles dormem, o corpo, suas dores, seu cansaço e suas disfunções, aparecem como uma denúncia dos limites que foram invisibilizados pela publicidade, mostrando a distância entre discurso e prática.

O cansaço, então, seria uma forma de resistência do corpo à sociedade do desempenho. É uma forma de dizer "não" ao excesso de positividade e cobrança.

O corpo atrapalha

Como escreve Eliane Brum em seu sempre atual Exaustos-e-correndo-e-dopados, os dispositivos eletrônicos e a internet passam uma sensação de liberdade e alcance imensos, ao mesmo tempo que borram os limites do tempo e do espaço. Lá e aqui, trabalho e lazer, se confundem. De alguma forma estamos “ligados”, tentando não perder nada do que acontece na rede eletrônica.

Consumimo-nos animadamente, ao ritmo de emoticons. E, assim, perdemos só a alma. E alcançamos uma façanha inédita: ser senhor e escravo ao mesmo tempo. (Eliane Brum)

O movimento incessante, que muitas vezes descrevemos como “correria”, tem o seu custo: a exaustão. O corpo é uma condição concreta da vida e possui seus próprios limites, mesmo que a dor e o mal-estar que sinalizam a pressão sobre esses limites sejam entorpecidos.

A internet prometeu aproximar o mundo, mas nos distanciou de nós mesmos. Conectados globalmente, somos ilhas isoladas. A obsessão por likes e seguidores transformou o outro em um rival a ser superado, não em alguém a ser compreendido. Paradoxalmente, a era da informação nos deixou mais sozinhos, afogados em um mar de conversas vazias e narcisismo.

Nesses tempos em que tudo parece ser possível, o depressivo seria o sujeito que se consome ao ponto de não poder mais. Se no discurso basta a livre iniciativa para se poder “chegar lá”, na prática o corpo se desgasta, perde forças e se imobiliza frente aos imprevisíveis e incontroláveis da vida. Em uma tentativa final de salvar a fantasia de poder ilimitado, a pessoa termina por se culpar: foi um fracasso pessoal.

Não mais poder poder leva a uma autoacusação destrutiva e a uma autoagressão. O sujeito de desempenho encontra-se em guerra consigo mesmo. O depressivo é o inválido dessa guerra internalizada. (Byung-Chul Han)

Burnout

Um dos resultados da dinâmica excesso-cansaço é o burnout. O burnout é uma síndrome resultante do estresse crônico no trabalho. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu o burnout como uma doença em 2019, na Classificação Internacional de Doenças (CID-11).

O termo burnout passa a ideia de que a pessoa queimou seu combustível e se esgotou. Ela passa a se sentir sem energia e exausta. O transtorno já acomete cerca de 30% dos brasileiros, segundo a OMS. De acordo com a International Stress Management Association (Isma), o Brasil é o segundo país com mais casos diagnosticados, sendo superado apenas pelo Japão.

As principais características do burnout são a exaustão física, emocional e mental, sentimentos de despersonalização e cinismo e a redução da eficácia profissional.

O mundo do trabalho contemporâneo, marcado pela cultura da produtividade a todo custo, frequentemente incentiva o exagero e a busca incessante por resultados. A pressão por desempenho, aliada à competitividade acirrada e à constante disponibilidade, cria um ambiente propício ao burnout. A valorização da multitarefa e a dificuldade em estabelecer limites entre vida pessoal e profissional contribuem para o esgotamento. Mesmo que o local de trabalho não incentive diretamente a cultura da produtividade, ela nos alcança através de mídias e outras mensagens disseminadas e reproduzidas socialmente.

Sem tempo

Em meio ao turbilhão da vida moderna, a contemplação e o descanso se tornaram “perda de tempo”. Substituídos por uma frenética dança de tarefas e notificações, perdemos a capacidade de nos conectar com nós mesmos e com o mundo ao nosso redor, uma atividade que requer energia e atenção. A multitarefa, tida como virtude, revela-se uma armadilha que nos aprisiona em uma existência fragmentada e superficial.

A partir de uma perspectiva de uma sociedade do cansaço, é possível pensar o descanso como uma forma de resistência. Uma resistência não apenas ao ato excessivo, mas acima de tudo uma busca de um outro caminho que não o da produtividade como medida de sucesso.

Por exemplo, quando estamos na correria, acabamos não percebendo o que acontece ao redor. Não temos tempo para olhar o céu, contemplar a lua cheia, ouvir o canto dos pássaros, sentir o cheiro das flores, saborear nossos pratos preferidos ou abraçar quem amamos. A pressão para produzir e completar projetos nos rouba a habilidade de desacelerar e apreciar a beleza do mundo. Podemos até mesmo passar a considerar o descanso e a contemplação uma bobagem.

Não ter potência total não é o mesmo que ser impotente. A ilusão da potência total é que acaba levando à impotência. Há potência em dizer não – e há potência em não fazer. (Eliane Brum)

À medida que adiamos experiências importantes, deixamos o afeto para “quando houver tempo” e seguimos de uma forma um tanto febril e automática o fluxo de demandas, nos desconectamos cada vez mais de quem gostaríamos de ser e do que gostaríamos de viver. A sensação de vazio é encoberta por distrações e compostos químicos, como se fossem capazes de fortalecer a vitalidade que atrofiou.

Resgatar a vitalidade passa por se permitir experienciar o que foi negligenciado. Passa, especialmente, por construir sentido: redescobrir quem amamos, o que amamos fazer, quem queremos ser, o que é para mim significativo, independente de sua utilidade ou julgamento do outro. Permitir que essas perguntas permaneçam e tenham efeito. Para isso, precisamos de um tempo que não seja o da produtividade, um tempo onde possamos hesitar.

Outros possíveis

Em muitos momentos da vida, justamente quando precisamos tomar grandes decisões ou quando algo inesperado ocorre, quando não há respostas claras para o que fazer ou quando nos deparamos com dilemas, nesses momentos é que a hesitação cria espaço para que a questão amadureça.

Descansar é também amadurecer. Na pausa da hesitação há um descanso do automatismo da certeza crua, que está mais para um computador (que não hesita) que para uma pessoa. Quando hesitamos, também nos conectamos com a nossa humanidade e traçamos outros possíveis que o código não permitiria. Reencontramos uma certa flexibilidade, mesmo que a angústia da dúvida seja desagradável.

Apesar de todo o seu desempenho, o computador é burro, na medida em que lhe falta a capacidade para hesitar. Se o computador conta de maneira mais rápida que o cérebro humano e acolhe uma imensidão de dados é também porque está livre de toda e qualquer alteridade. (Eliane Brum)

Como resistência ao cansaço, o descanso não é um processo apático ou distrativo, mas um processo de conexão. Pode ser um processo de dormir e sonhar, conectando o corpo ao relaxamento e ao onírico. Pode ser um processo de contemplar um passeio pelo parque, estando realmente presente no passeio e observando o que está ao redor, o céu, os pássaros, o verde das árvores, a carícia da brisa no rosto, os sons de crianças brincando e o cheiro de pipoca. Pode ser uma conversa com uma pessoa querida, quando damos e recebemos toda a atenção, de todo o coração e olhando nos olhos.

É preciso parar para estar presente. E ao estar presente, permito-me reconectar com a vida acontecendo, onde é possível recompor a vitalidade. Um sinal de reconexão com a vida é a vitalidade que experimentamos após um sono restaurador ou um momento na natureza ou uma conversa profunda com uma pessoa amada. Na presença da vida, outros caminhos surgem: um outro possível se delineia, algo diferente e onde talvez se possa descansar do mesmo.


Referências:

Exausto-e-correndo-e-dopados (Eliane Brum). Em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/04/politica/1467642464_246482.html

Síndrome de Burnout: Brasil é o segundo país com mais casos diagnosticados (Estado de Minas). Em: https://www.em.com.br/app/noticia/saude-e-bem-viver/2023/05/26/interna_bem_viver,1498977/sindrome-de-burnout-brasil-e-o-segundo-pais-com-mais-casos-diagnosticados.shtml

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

BARBER, Benjamin. Consumido. Tradução Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Record, 2009.


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