Ozempic e o retorno do culto à magreza extrema
October 29, 2024•2,114 words
Por Anna Chaika e Djamilia Prange de Oliveira (DW Brasil)
Comentado por Susane Londero e José Cavalcante
Tempo de Leitura: 10 minutos
#pratodasverem: uma modelo de cabelos pretos, usando um vestido branco desfila, com algumas pessoas sentadas ao fundo, do lado da passarela.
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O medicamento para diabetes Ozempic, usado para emagrecimento, tornou-se popular, levando à sua falta para pacientes com diabetes.
A popularidade do Ozempic coincide com o retorno da estética dos anos 2000, com foco na magreza extrema ("heroína chique").
Especialistas alertam para os riscos da busca pela magreza extrema, incluindo transtornos alimentares e problemas de saúde mental.
O movimento corpo positivo, que promove a diversidade de corpos, perde espaço com a valorização da magreza extrema.
Modelos plus size observam a diminuição de trabalhos e o retorno da preferência por modelos magras na indústria da moda.
O medicamento para diabetes Ozempic, que tem sido usado para o emagrecimento, conquistou Hollywood. Celebridades como Oprah Winfrey, Stephen Fry, Kelly Clarkson, Elon Musk e outros famosos confessaram o uso de medicamentos para perda de peso.
A crescente popularidade do Ozempic ocorre num momento de retorno da estética Y2K (anos 2000), uma tendência que incorpora a nostalgia da moda, da cultura pop e da música da geração da virada do milênio – e, é claro, de ícones como Paris Hilton, Britney Spears, Christina Aguilera e Kate Moss. Com seus jeans de cintura baixa, piercings no umbigo e minissaias, o renascimento da moda do início dos anos 2000 trouxe de volta a obsessão pela magreza extrema que definiu a era da "heroína chique".
O Ozempic foi lançado em 2017 como um medicamento injetável para diabetes. Seu ingrediente ativo é o semaglutida. O medicamento se tornou viral nas redes sociais há cerca de dois anos, depois que influenciadores começaram a compartilhar suas experiências de perda de peso de maneira rápida. Hoje, a hashtag #ozempic tem milhões de visualizações no TikTok e no Instagram.
O medicamento começou a ser usado não apenas por quem lutava contra a obesidade ou a diabetes, mas também por aqueles que simplesmente queriam perder um pouco de peso para o verão. Ele se tornou tão popular que começou a faltar para os pacientes com diabetes, os que realmente precisam do Ozempic.
A Novo Nordisk, a gigante farmacêutica dinamarquesa que produz o Ozempic e o Wegovy – este último, também com a substância ativa semaglutida, aprovado para o tratamento da obesidade e sobrepeso –, é atualmente a empresa mais valiosa da Europa.
As tendências culturais, especialmente aquelas difundidas pela mídia e redes sociais, podem ter um impacto significativo na saúde mental e na autoimagem das pessoas. A busca por um padrão estético idealizado, como a magreza extrema, pode levar à insatisfação corporal e a comportamentos de risco para transtornos alimentares, como anorexia e bulimia. A pressão social por se adequar a esses padrões pode gerar ansiedade, depressão, baixa autoestima e distorção da imagem corporal. A exposição constante a imagens de corpos "perfeitos", muitas vezes alteradas digitalmente, contribui para a internalização desses padrões e a comparação social, levando as pessoas a se sentirem inadequadas e insatisfeitas com seus próprios corpos.
Ozempic e a moda da virada do milênio
O Ozempic teve até mesmo seus cinco minutos de fama durante a semana de moda de Berlim, quando a marca Namilia exibiu na passarela uma camiseta com os dizeres "I love Ozempic". A peça provocante causou reações negativas de usuários de redes sociais e da imprensa, com alguns considerando a ação "tóxica" e "superficial".
Após a reação, a Namilia anunciou que a peça nunca foi feita para ser vendida, mas se trata de "uma camiseta irônica com slogan fazendo refletir sobre as pressões da fama, a cultura das celebridades e os ideais inatingíveis de corpo".
O estilo de corpo predominante na indústria da moda, caracterizado pela magreza extrema, impacta negativamente a saúde mental ao promover ideais de beleza irrealistas e inatingíveis para a maioria das pessoas. Essa representação limitada da beleza contribui para a internalização de um padrão estético que gera insatisfação corporal e baixa autoestima, especialmente entre mulheres e adolescentes. A busca por se encaixar nesse padrão imposto pela indústria da moda intensifica a pressão social pela magreza, incentivando o uso de métodos prejudiciais à saúde, como dietas restritivas, exercícios físicos excessivos e, mais recentemente, o uso indiscriminado de medicamentos como o Ozempic para fins estéticos.
Khan, uma modelo plus size teuto-turca que desfilou pela Namilia (embora não com a polêmica camiseta), não entende a indignação. Ela acredita que a mensagem não era celebrar o Ozempic, mas sim criticar como a moda está voltando para a estética "heroína chique", associada a modelos magras e pálidas como Kate Moss ou Gia Carangi, que foi viciada em heroína e morreu aos 26 anos de complicações causadas pela aids.
O termo bastante problemático "heroína chique", que glorifica o abuso de drogas e o tamanho 0, foi popularizado pelo fotógrafo Davide Sorrenti, que usou a estética em seu trabalho, retratando modelos de pele pálida, olheiras e um corpo muito magro.
As adolescentes do sexo feminino são mais suscetíveis à influência das tendências corporais propagadas pela mídia e pela moda. A adolescência é uma fase crucial na formação da imagem corporal, e a pressão social para se conformar aos padrões de beleza, frequentemente irreais e inatingíveis, impulsionados pela mídia, especialmente as redes sociais, contribui para a insatisfação com o corpo e a busca por dietas restritivas, aumentando a vulnerabilidade a comportamentos de risco para transtornos alimentares, como compulsão alimentar e métodos purgativos. Estudos com adolescentes brasileiras revelam que a internalização do ideal de magreza e a insatisfação corporal impactam significativamente os comportamentos de risco para transtornos alimentares.
Para Khan, "heroína chique" é mais um termo que cria tendências de corpos. "A cada ano, surge uma nova tendência. Definitivamente, o termo ‘heroína chique’ vive um grande retorno para a moda. Antes, era o corpo positivo, mas, de um ano e meio para cá, estamos vendo menos curvas nas passarelas", observa.
Adeus, corpo positivo?
Como uma das poucas modelos plus size do setor, Khan sente o retorno do ideal do tamanho PP. "Muitas vezes tive trabalhos confirmados e depois cancelados após a verificação do meu tamanho, como aconteceu, por exemplo, com uma casa de moda parisiense", conta à DW.
O corpo positivo é um movimento social que desafia os padrões de beleza tradicionais e celebra a diversidade de corpos, promovendo a autoaceitação e o amor próprio, independentemente de tamanho, forma, etnia, gênero ou capacidade física. Ele se opõe à cultura da dieta e à pressão social pela magreza, encorajando a valorização da saúde e do bem-estar em detrimento de ideais estéticos irreais e muitas vezes prejudiciais à saúde física e mental. O movimento corpo positivo busca combater a vergonha do corpo e o preconceito, promovendo a representatividade de diferentes corpos na mídia e na sociedade, e encorajando a aceitação de si mesmo como um passo fundamental para uma vida mais feliz e saudável.
Particularmente no setor de alta-costura, diz Khan, modelos magras são novamente as preferidas, ecoando o legado controverso deixado por estilistas como Karl Lagerfeld. Entre outras coisas, Lagerfeld é lembrado por declarações gordofóbicas como: "Ninguém quer ver modelos com curvas na passarela", ou por chamar a cantora Adele de "um pouco gorda demais".
Uma reportagem recente da Vogue Business confirma as observações de Khan: na temporada de desfiles de outono/inverno de 2024, menos de 1% das modelos era plus size.
A gordofobia, que se manifesta através da discriminação e do preconceito contra pessoas gordas, tem impactos sérios na saúde mental, contribuindo para o desenvolvimento de ansiedade, depressão, baixa autoestima e transtornos alimentares. A constante exposição a mensagens negativas sobre o corpo gordo, seja na mídia, em ambientes sociais ou até mesmo no sistema de saúde, leva à internalização da crença de que o corpo gordo é indesejável, feio e doente. Essa internalização pode levar a comportamentos de risco, como dietas restritivas e métodos purgativos, além de causar sofrimento psicológico e afetar a qualidade de vida. A gordofobia também limita o acesso a oportunidades e recursos, gerando exclusão social e impactando negativamente a saúde mental das pessoas gordas.
Paula Villa Braslavsky, professora de sociologia e estudos de gênero da Universidade de Munique, diz que ser magro nunca saiu de moda, nem nas passarelas e nem nas ruas. "A sociedade sempre julgou o peso", diz. "Desde o final do século 19, é uma questão moral. Quem está acima do peso é considerado preguiçoso, estúpido, sem educação, moralmente depravado ou desinteressado."
A especialista teme que a normalização de medicamentos para perda de peso, como o Ozempic, possa intensificar a vergonha do corpo e o preconceito.
"Para as mulheres, a percepção do que é o peso ‘certo’ sempre foi mais limitada do que para os homens", observa Braslavsky. "Os limites são mais rígidos porque, historicamente, as mulheres são julgadas principalmente por sua aparência. Muito magras, muito gordas, muito musculosas, muito bonitas ou não suficientemente bonitas: as mulheres são criticadas de qualquer maneira."
Os ideais de perfeição do corpo feminino, propagados pela mídia e pela sociedade, impõem padrões irreais e inatingíveis, gerando diversos problemas, especialmente para mulheres e adolescentes. A constante busca pela magreza extrema, frequentemente associada à beleza e ao sucesso, contribui para a insatisfação corporal, levando a comportamentos de risco como dietas restritivas, exercícios em excesso e até mesmo procedimentos cirúrgicos desnecessários. Essa pressão estética pode desencadear problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão, baixa autoestima e transtornos alimentares. Além disso, a internalização desses ideais distorce a percepção da própria imagem, levando as mulheres a se sentirem inadequadas e infelizes com seus corpos, impactando negativamente sua qualidade de vida. É fundamental desafiar esses padrões e promover a diversidade de corpos, incentivando a autoaceitação e o amor próprio como pilares de uma vida mais saudável e feliz.
Apesar do retorno da "heroína chique", Khan é otimista. "Ainda existem marcas para as quais o corpo positivo não é apenas uma tendência", diz citando Sinead O'Dwyer, Ed Hardy e Namilia como exemplos.
"Se eles realmente celebrassem o Ozempic, não enviariam modelos plus size para a passarela. E eu não era a única", conta ela. Em sua opinião, a Namilia está "apenas sendo honesta ao destacar a controvérsia em torno da droga, porque, infelizmente, as pessoas realmente amam o Ozempic".
Fontes:
CHAIKA, Anna; OLIVEIRA, Djamilia Prange de. Ozempic e o retorno do culto à magreza extrema. DW, [s. l.], 12 set. 2024. Disponível em: https://p.dw.com/p/4kWDB. Acesso em: 27 out. 2023.
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